Aos trancos sem relâmpagos

Aconteceu o que eu temia! A política local realmente deu uma complicadinha no nosso trabalho. A parceria entre a instituição que me contratou e a prefeitura foi desfeita sem explicações. Ficamos sem motorista e eu tive que usar de minha diplomacia para ver se o tempo abria de novo. Pois ele literalmente fechou! Gente, do nada fez um frio como o de Juiz de fora. Uma loucura! Mas logo tudo se resolveu, os ânimos se acalmaram e no fim das contas só fiquei sem um dia de aula, que já fui notificada, não precisarei repor.

O novo motorista é também agente de saúde e a visão dele do Quaresma é bem menos romântica do que a minha. Aliás sucede comigo como todo processo histórico. Depois do romantismo, realismo. Ontem, minha aluna preferida, Santa, por ser alegre e cantante, chegou tristinha. Perguntei que bicho tinha mordido ela e ela me falou que tava com dificuldade de andar. Levantou a saia e eu nunca tinha visto isso de perto... Acho que é hanseníase. Nas pernas, no pé e nas mãos. Como estamos trabalhando com durepox e verniz ela nem pôde fazer nada e ficou mais triste ainda. Meu coração se partiu em dois e ontem a noite quase não dormi. Era isso e outras questões também que não cabem aqui... O motorista/agente de saúde disse que ia ver um jeito de ajudar ela...

Mas de resto tudo de vento em popa. Nossa coleção de biju tá coloridíssima! Pena que esqueci o cabo (não esperava conseguir net hj) para colocar as fotos. Mas em breve colocarei. Vocês vão ver tudo! tem muita coisa... Digamos inusitada, rs. mas estou super satisfeita com o trabalho pq é esse tipo de liberdade que eu queria nas minhas aulas. Queria que elas mostrassem a alma delas. A feirinha que está complicada. Elas se sentem muito discriminadas pela população de Setubinha e não querem dar as caras. Sem falar que tudo que estão produzindo estão fazendo pra elas! Por mais que se faça para vender escuto sempre algo do tipo: "Tomara que isso não venda pra ficar para mim". É muito engraçado.

Aliás, sinto que quando entro naquele salão de igreja pra aula o mundo todo parece ficar lá fora. Algumas delas fazem fofocas e outras reclamam muito à toa mas eu acho que me divirto. Dona Anália outro dia disse pra mim que eu ia deixar saudade no coração dela e foi a mesma que um dia jogou a biju pra cima e disse que não podia continuar. Meia hora depois volta ela se desculpando. Disse que tinha tido uma dor de barriga repentina sem tempo para explicações. Foi aquela gargalhada geral. Rosa me iniciou no fumo de rolo de corda. Um dia fiquei brava com a desorganização delas e depois de um pito fiquei mansinha, mansinha... Jesuína é mãe de uma xará minha que é a lindeza em forma de criança. Um anjinho mesmo! Nem Manoela, sua bebezinha, chora. Impressionante! Ela é uma pessoa intrigante e suas bijus são muito arrojadas. Gisleide, na última reunião da feirinha me saiu uma líder. Ela que era tão caladinha, pôs ordem no terreiro...

E por aí vai... Cada dia uma surpresa... Meu tempo na net está se esgotando e não poderei falar de todas... Aos pouco vou colocando elas aqui, não que seja preciso, pois cada uma já deixou uma marca em mim de tal forma que nem sei mais se sou a mesma.

Passarinho que se debruça, o vôo já está pronto!


As meninas só pensam em criar. Sua alegria está em deixar as sementinhas encatarradas no mundo, plantando gente como se esperança fosse planta com grão. Os sonhos delas se fazem apertados na rotina cuja mesmice faz a vida acontecer depressa. Acho que aqui está as entranhas do mundo, vísceras mal alimentadas de uma sobrevivência que faz farto o mundo nosso na cidade grande. Tanto suor pra perdermos tempo com neuroses e fantasias que não dão em nada.Liberdade pra elas é tirar o lenço do cabelo. Assim fica mais bonita, arrumando ele com "prisado" enfeitado com as florzinhas de renda que ensinei elas fazerem. Usar bijuteria deixa a mulher mais valorosa, elas me explicaram.

Sexta-feira foi meu primeiro dia de verdade, pois primeiro dia é sempre uma espécie de exceção. Agora fui com o motorista da prefeitura; moço bonito, de cultura vasta setubinhense que me explica a cada dia os modos daqui. No curso, uma delas se adiantou e com a primeira técnica que ensinei reformou um brinco. No sábado, algumas delas subverteram totalmente os materiais e tudo mais ensinado. Adoro isto e procuro estar atenta. Precisei mudar todo o planejado pois elas estão além das minhas expectativas iniciais. Antes que eu pedisse me trouxeram materiais da terra: sementes lindas! Disseram que foi um curso de bijuterias com sementes que elas queriam. Muito louvável! O meu é só de montagem, embora eu esteja ensinando a elas fazer alguns materiais com papel reciclado, pano e linha de crochê. Mas não esmoreço, estou vendo um jeito de atender a demanda delas... A minha dificuldade é descobrir como furar as tais sementes. Toda essa consciência, começo a entender agora, é fruto do trabalho do projeto Travessia. Na verdade peguei tudo mastigadinho. Elas me contaram tudo do curso de "emprendorismo".


(As baleias esperando os restos do almoço/lanche das meninas)

A aula de sábado foi de 13h às 19h. Tava um calor lazarento como nunca havia feito nestes dias. Tanto que teve uma hora que acho que a minha pressão baixou. Mas o chato mesmo é o entra e sai de gente. É eu ensinando e cachorro, criança e homem encachaçado no meio do caminho. Hoje vou ver o que faço e sei que isso não vai ser fácil! Sábado quando pedi prum homem se retirar ele encrespou. Aliás, este foi um dia difícil, teve até uma briguinha entre elas e o motorista atrasou pra me buscar. É que sendo eleição os carros da prefeitura foram requisitados pela justiça eleitoral e nós não tínhamos contado com isso. Fiquei tensa... Mas no final tudo deu certo.


(centro comercial de Setubinha)

Domingo foi minha primeira e ultima folga. Não entrei na net nem liguei pra casa porque o negócio tava fervendo por aqui. Temos serviço de quarto mas eu pedi pra eu mesma limpar pra matar o tempo vago. Anderson é quase um Setubinhense. Adora ficar sentado num banquinho na porta da pousada e acompanhar a política absorvendo a tensão local. E que tensão! O prefeito atual não conseguiu se reeleger e o clima na pousada pesou. Só então peguei Guimarães Rosa e só saí de noitinha pra comer um cachorro quente bem ruim, única coisa que tinha. O clima na cidade estava péssimo, pois sempre tem um que não leva desaforo pra casa e outro que não tem medo de morrer. Há rumores de que o candidato vencedor comprou o pessoal da roça (maioria da população). E que inclusive vai haver anulação da eleição... Mas rumores que achei melhor não apurar. Acordei hoje com um papo de que não sei quem foi apagado por conta da política... Não quero saber de nada, só espero que toda essa confusão não altere meu trabalho.

Primeiro dia

Gostaria de descrever pra vocês o chorinho apertado na garganta quando o ônibus me arrancou de Juiz de Fora. Tantas coisas me vieram na cabeça que pensei que ia morrer. Mas deixa pra lá essa bobagem de descrever neurose... Gostaria de descrever para vocês a sensação de liberdade quando me dei conta que as coisas que iam ficando para trás diminuíam ante a distãncia. E Mick: Time is on my side! Mas deixa pra lá essa mania de poesia. Pois não posso ficar muito tempo na net e eu quero é contar das meninas. Um breve resumo da dinâmica de apresentação (das respostas delas):


- O que vc mais gosta na vida?
- Eu gosto de ver meus filhos tudo de banho tomado e barriga cheia!
- O que vc gosta de fazer?
- Eu gosto de trabalhar muito...
- Você sonha com que?
- Eu sonho ter um trabalho importante numa loja chique.
- Quais são seus planos?
- Meus netos, dou minha vida por eles (*olhos brilhando*)

E sem que eu perguntasse:

- Minha vida é luta!
- Eu adoro resar. Adoro resar e estudar!

Pensei: tô perdida! como vou falar de moda pra esse povo. Arrisquei algo simples como: "o importanteno artesanato é criatividade. A técnica é coisa boba. A criatividade é que faz o artesanato ficar bonito!". Pronto! Acertei em cheio. Falei a língua delas. Toda técnica q ensinei foi subvertida num instante. O que me advertiram ser um problema, foi para mim a superação de minhas expectativas. Estas são mulheres que erram sem medo e acertam com coragem.


Agora elas são oficialmente minhas meninas! O clima é de ternura no ar e com certeza a única coisa de interessante q tem por aqui é o povo. Ninguém nem queria que acabasse a aula. Mas fazer o que? Dia seguinte elas levamtam à cinco "pra panhá café". Teve uma que levou a bebe e colocou dentro de uma caixa de papelão pra dormir. Outra deixou o filho pendurado no peito enquanto fazia uma pulseira... Elas tiram de letra esse trem de criatividade. De moda então, tô tranquila. Na aula de hoje vamos fazer cintos. Elas me pediram para fazer logo hoje. É que querem ser novidade "no dia da votação". Todo dia tem lanche que a Alda faz. Ontem tava uma delícia! Pão caseiro com suco de goiaba.

Minhas acomodações na pousada da Dona Margaridas




É suíte!



Peguei uma espécie de alergia no pescoço. Mas tem problema não...

Banho tem que ser às 10h da manhã, que é horário que as mulheres da pousada fazem comida (fogão à lenha) e o chuveiro fica quentinho (à vapor). Meus companheiros de trabalho, Marcela e Anderson são uns fofos. Ela foi ontem pra Machado por conta da eleição e da saudade da filha de cinco anos. Nossa maior dificuldade é arrumar um lugar pra tomar uma brejinha depois do trabalho. Chegamos às 22h do bairro Quaresma (que pasmem é a área mais pobre de Setubinha - como se a cidade não o fosse também carente) e já está tudo parado.

Amanhã são 7h de aula, de 13h às 20h. Domingo tenho que ver o que vou fazer pra matar o tempo. Pois por incrível que pareça, o tempo livre aqui é nosso maior medo. Mas já fiquei sabendo que se o prefeito conseguir se reeleger vai ter festa no restaurante da pousada. kkkkkk Vamos ver!

PS1: "Aos" que pediram a cachaça tá encomendad, viu?
PS2: Nem deu tempo ainda pro Guimarães Rosa!

Tenho que ir. às cinco o motorista da prefeitura passa pra me buscar!

Em poucas horas…

Contratempos nem sempre significam que estão contra… Mas que você vai ganhar tempo para desacelerar o coração e se concentrar mais. Na verdade, se eu fosse sábado que passou, ficaria louca com tanta coisa acontecendo. Eu queria ser menos sensível… Queria encarar a vida com mais simplicidade, mas é muito difícil. Talvez seja isso, além da minha ingenuidade, que eu esteja procurando. Talvez por isso eu tenha resolvido me movimentar. Eu não sei, não quero ficar me glorificando e mistificando isso tudo. É só uma mania chata de querer dar sentido a tudo. Então, friozinho na barriga! 21 e 30 horas um ônibus vai decolar… Algumas pistas do que me espera aqui:

Santo Antonio do Setubinha, primeiro nome do atual município de Setubinha, foi distrito de Malacacheta, através de Lei, em 1865. Emancipou-se, em 1995. Sua economia é agro-pecuária, produzindo café, feijão, milho e arroz em destaque. Tem área de 185,0 km². Sua população, de acordo com o censo de 2000 (IBGE) é constituída de 9.366 habitantes, sendo 7.859 moradores na área rural.

Por volta de 1830 a região de Setubinha foi visitada por um homem chamado Jerônimo. Jerônimo era um Português cobrador de impostos, que se orientou pelo leito de um rio ao qual deu o nome de Setúbal. Deste rio originou o diminutivo Setubinha, nome dado a vila que nasceu próxima a esse rio. Em 1840, as terras visitadas pelo seu Jerônimo foram doadas em sesmarias a uma família portuguesa de nome Batista de Miranda que construiu as primeiras casas, criando o povoado Santo Antônio de Setubinha.

Mais tarde outras pessoas chegaram a Setubinha que passou a ser conhecida como Freguesia do Santo Antônio de Setubinha. Por volta de 1865 novas famílias, algumas de tradição mineira como a Paula Dias, foram chegando, trazendo a povoação, e foi elevando a vila ao Distrito de Minas Novas. Setubinha pertenceu a vários municípios. E foi na condição de Distrito de Malacacheta que muitos setubinhenses lutaram por sua emancipação política, que se deu em 1995.

O Alasca é aqui



imagem: http://pt.wikipedia.org/wiki/Setubinha

Eu dizia ao me deparar com a história de vida de Edie Sedgwick o quanto precisava ser mais autêntica e o quanto tinha necessidade de redescobrir meus sonhos. Estava saudosa da minha ingenuidade e queria muito fazer algo por mim. Acordei assim na quarta passada repetindo como um mantra uma frase vaga: “Preciso fazer acontecer. O quê, não sei”. Sendo assim não há mistério no fato d’eu dizer sim à proposta de um amigo: “Quer dar uma oficina de bijuteria no Vale do Mucuri?”. Nem sabia onde ficava isso. “Vinte dias? Eu vou amar!”. E já fui me sentindo Guimarães Rosa.

Eu sei, Grande Sertões Veredas se passa mais ao norte de Minas Gerais, sul da Bahia e Goiás. E o Vale do Mucuri, mais especificamente Setubinha, para onde vou, fica mais ao nordeste do estado. Mas microrregião de Teófilo Otoni sertão é. Então foda-se, careço de referências para me reinventar. Nem tão do nada consigo recomeçar meu sertão, já basta a cidadezinha ter mais ou menos 1500 habitantes.

Primeiro fiquei frenética ante a possibilidade de ir num lugar tão inusitado para mim. Mas agora, que falta uma semana para a minha partida, experimento certa dose de medo. Primeiro profissional. Imagine, faz muito tempo que não coordeno um grupo. Acabei de fazer a primeira parte da apostila de noções sobre moda, artesanato e criatividade, acho que ficou ótima, mas não conseguir imaginar como são essas pessoas me dá um frio na barriga. Depois tenho medo de não me hospedarem num lugar legal, que eu tenha que conviver com bichinhos ou, o que é pior, gente má. Tem também a grande novidade, só revelada nesta sexta: Tenho que adequar meu conteúdo em 100h. Imagine! É muita raça de tempo! Tenho medo de entediar as meninas e me sentir fracassada. E por fim esta questão do tempo, cinco horas diárias dão um mês de Mucuri‼! É muito tempo para mim, ir para tão longe, cheia de coisas aqui, perder Guarapari com Mamis (nós duas planejamos tanto fazer uma coisa só nós)…

Mas são medinhos, coisas que preciso considerar como bobas. Porque até agora tudo parece estar dando tão certo! Mudei também o plano inicial: Tinha resolvido correr aqui com a montagem do curso para passar em Belo Horizonte e fazer a compra do material lá. Contudo, descobri que esta possibilidade é inviável. Tenho que estar em Setubinha daqui há uma semana e ia perder muito tempo. Preciso me virar por aqui mesmo e pensar que sou a Marin Frist, de Men in Trees, minha série de TV predileta na atualidade. Eu sei, lá não é o Alasca. Eu sei, não há fartura de homens sensíveis. Mas ter no currículo um coração partido e ter a incrível missão de levar Chanel, Schiaparelli, Dior, Balenciaga, Courrèges e Laurent pro meio do nada nos faz um pouco parecidas.